Devaneio #3: Trocar as lâmpadas e manter o lume aceso
Esta newsletter era para sair na segunda-feira, mas há alguns dias que não consigo me concentrar o suficiente para ler ou escrever. A ansiedade tomou conta nos últimos tempos, então decidi mudar o dia para toda sexta-feira (a cada 15 dias). E, mesmo estendendo o prazo, foi extremamente difícil sentar em frente a esta tela e pensar no que dizer para vocês. Eu gostaria muito de dizer algo que não doesse, algo que fizesse brotar alguma esperança, mas estou tão desalentada, que não sei se sou capaz. Escrevi um poema dizendo que na minha terra virei bicho arisco tentando fugir de quem quer acabar comigo. A minha musa não mentiu. Estamos todas tentando fugir a essa sorte de ter nossas vidas despedaçadas. Tudo o que foi cultivado pelo atual (des)governante deste país é o ódio às mulheres, à população negra e periférica, à comunidade LGBTQIAP+, às minorias de um modo geral. Como respirar? Como se sentir gente civilizada diante da barbárie? Em muitos momentos, me parece impossível. Apesar disso, precisamos dar uma resposta ao que estamos vivendo. Não dá para fingir que vamos sobreviver. Não sei se vamos. O Genocídio correu solto nos últimos tempos, porque a política que nos pauta é a de morte, e o pior disso é que ela tem muitos adeptos.
No domingo, logo após votar, fui a uma feira de alimentos orgânicos que acontece no Parque Ecológico da cidade onde moro. Sempre que podemos, vamos. Para o meu espanto, a maioria dos clientes lá presentes estava vestida de verde-amarelo. Essas pessoas apoiam um governo que libera uma infinidade de venenos presentes na nossa comida, mas vai à feira orgânica para consumir seus alimentos. Ou seja, grosso modo, a lógica dessa gente é: viva o agro, morra o pobre! Sabemos que, na atual circunstância, pouquíssimas pessoas têm esse poder de escolha. São milhões de brasileiros e brasileiras passando fome. As pessoas comem o que tem para hoje, mesmo porque nem sabem se terão alimento para o amanhã. E esse é só um exemplo da vileza desses indivíduos. Ao transitar pela feira, eu sentia o olhar de ódio e recriminação — tanto dos frequentadores quanto de vários feirantes — por conta do boné do MST que minha filha e eu usávamos. Essa feira não é de produtores do Movimento Sem Terra, até onde pude perceber é de pequenos e médios agricultores, cuja maioria demonstrou-se apoiadora do atual governo. Feirantes e clientes de um mesmo lado: o do genocida. E eu nem imaginava o tamanho do buraco em que estamos metidos.
A ida à feira me colocou num movimento de indignação, mas naquele momento eu ainda tinha esperança de que virássemos o jogo no domingo mesmo, então lidei com mais tranquilidade. Pensei: vai acabar hoje isso. O problema foi a desilusão que rolou depois, quando percebi que não daria para virar — pelo menos não do jeito que queríamos. Talvez por essa razão esteja tão difícil escrever algo bonito ou leve para acalentar nossos dias. O sentimento é de revolta e de tristeza, ao mesmo tempo. Não conhecemos ou fingimos que não conhecemos o nosso povo, visto que é terrível admitir o percentual de gente ruim existente ao nosso redor: no trabalho, na fila da padaria, na feira de orgânicos, no grupo de WhatsApp da família — quase sempre surgindo sem o menor pudor de dizer a que veio e às vezes chafurdados da lama em que se esconde.
Precisamos — para ontem — de mudanças, e a principal delas reside na ordem e na lógica do funcionamento das coisas. Não dá mais para viver numa sociedade em que tanta gente apoia e defende o inaceitável. Na perspectiva de educadora, costumo ser mais esperançosa do que deveria na maior parte do tempo, no entanto, depois de domingo, algumas lâmpadas queimaram aqui dentro do peito. Fiquei péssima. Até os alunos e as alunas da escola onde trabalho perceberam. Curiosamente, dois deles vieram falar comigo. Estavam sentidos porque não ganhamos no primeiro turno. Eu nunca falei das minhas afinidades políticas com eles/as, tampouco os tenho em minhas redes sociais. Quiçá tenha bastado um brilho no olho diferente. A impressão é que algum (re)conhecimento inusitado emerge quando as almas estão afinadas. Quase nunca falha. As afinidades se encontram por aí, da mesma maneira que achamos a repulsa quase instantânea por quem insiste em defender a pessoa desprezível que, hoje, nos (des)governa rumo a um precipício. O fato foi que a conversa com eles me levou a trocar umas luzinhas aqui dentro e manter o lume bem aceso. Afinal, não podemos deixar que a sombra nos tome agora. Nem o desânimo. Nem o medo. Avante! Espero, profundamente, que no dia 30 de outubro tenhamos sorrisos e lágrimas de alegria/alívio no rosto de quem se preocupa com o coletivo e realmente está do lado da vida — e da vida em sua plenitude, com dignidade e sentido de existência.